Depois
de idas e vindas, com direito a pronunciamentos e notas, no dia
10/03/2020 a Globo - até por uma questão de controle de danos - se viu
forçada a pedir desculpas em pleno Jornal Nacional pela matéria de 14 minutos que vitimizava um presidiário "trans" que estuprou e estrangulou um menino de 9 anos porque estava há oito anos sem receber visitas. Em linguagem jurídica: homicídio triplamente qualificado e
estupro de vulnerável.
Foi, entretanto, uma desculpa intelectualmente desonesta. Por mais de um motivo.
A rede afirmou que "Apenas depois da exibição do quadro, o Fantástico tomou conhecimento da gravidade do crime". Sinto muito, mas eu não consigo acreditar. Até acredito que a direção realmente não sabia, mas os jornalistas e produtores envolvidos diretamente na matéria? Bastante improvável. Aliás, um jornalista experiente (estamos falando de um dos principais programas da rede) não se perguntaria como uma pessoa está presa há pelo menos 8 anos em regime fechado? Ora, a pena para roubo é de quatro a dez anos, e um crime cometido sem violência à pessoa ou grave ameaça, a progressão exige apenas o cumprimento de 1/6 da pena, que raramente é a máxima possível. Em cerca de um ano ou menos, o criminoso estaria no semiaberto ou no aberto. É pra acreditar que ninguém da reportagem, edição ou produção sabia disto? E que ninguém teve a curiosidade de perguntar para o entrevistado ou para a administração penitenciária o crime cometido?
Como comentou brilhantemente o jornalista Silvio Navarro,
analisando o caso no programa Pânico de 09/03/2020: pra acreditar que nenhum jornalistas sabia disso,
tem que ser devoto de Nossa Senhora da Ingenuidade Jornalística!
Parece-me
que o repórter amador Drauzio Varella (chamo-o de repórter por estar
desempenhando este papel, e não o de médico) é o menos culpado de todos.
Ele não é um profissional da imprensa e pode eventualmente (e
equivocadamente) se deixar levar pela emoção. Ok, somos todos humanos e
podemos cometer erros de julgamento no calor do momento. O grande
culpado foi o departamento de jornalismo, que construiu uma tese,
determinou o enfoque, editou, selecionou o abraço, o dramatizou e, como
se viu, mentiu por omissão. Isto não deve ter passado pela direção, mas
com certeza passou por uma supervisão.
Nas desculpas, a Globo reconhece dois erros: ter
induzido o espectador a crer que o crime cometido teria sido roubo e ter
envolvido a família do menino. Pedir desculpas por envolver a família
do menino estrangulado e violentado é devido e necessário, mas não
suficiente. A emissora teria que reconhecer que a matéria é, em si, um
péssimo trabalho jornalístico. Uma mentira minuciosamente construída com
verdades. Era toda voltada a provar uma tese: por preconceito, por
"transfobia" (sic), os presidiários "trans" são abandonados até pelas
famílias, e alguns ficam até oito anos sem receber uma visita! E qual é a
realidade? As pessoas não gostam de criminosos violentos, e quando o
crime é hediondo demais, até a família os abandona.
Isso não é preconceito, é algo humano e compreensível.
Caberia
reconhecer que a tese desenvolvida era equivocada ou, na mais
benevolente das hipóteses, sem amparo nos fatos exibidos. E que houve
indevida manipulação emocional dos espectadores - com
longas pausas, músicas, seleção de imagens, construção do personagem.
Não foi mera omissão de dados: o objetivo da reportagem era levar o
espectador a sentir o máximo de empatia e carinho por alguém que
supostamente seria uma vítima de um abandono cruel, e assim confirmar a
tese de abandono por preconceito.
O mais irônico: os presos "trans" que erraram mas são pessoas dignas, como aparentemente acontece com "Lola" (condenado por roubo), recebem visitas e são acolhidos pela família (11:24 do vídeo). O que contraria a tese apresentada.
O mais irônico: os presos "trans" que erraram mas são pessoas dignas, como aparentemente acontece com "Lola" (condenado por roubo), recebem visitas e são acolhidos pela família (11:24 do vídeo). O que contraria a tese apresentada.
A omissão de um dado relevante em uma matéria é um erro escusável, mas a construção de narrativa falsa desmentida pelos fatos ("o presidiário abraçado foi abandonado até pela família em razão de sua sexualidade") é uma desonestidade intelectual - e em relação a ela, a Globo não se desculpou.
P.S.
1) Uma excelente análise jornalística sobre o caso foi dada pelo jornalista Sílvio Navarro, no programa "Pingo nos Is" de 09/03/2020. Também a análise de Augusto Nunes no mesmo programa é interessante.
2)
Sem se desculpar, a Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo (SAP SP) apagou o tweet que incentivava o envio de
cartas ao preso. Será que também não sabia qual era o crime cometido?
Gostaria muito de saber quem elaborou esta arte utilizada no tweet
apagado e se foi paga com dinheiro público.
Tweet originalmente em https://twitter.com/sapsp/status/1234603130068852737, mas apagado


