quarta-feira, 11 de março de 2020

Solidao, infanticídios e desculpas desonestas

Depois de idas e vindas, com direito a pronunciamentos e notas, no dia 10/03/2020 a Globo - até por uma questão de controle de danos - se viu forçada a pedir desculpas em pleno Jornal Nacional pela matéria de 14 minutos que vitimizava um presidiário "trans" que estuprou e estrangulou um menino de 9 anos porque estava há oito anos sem receber visitas. Em linguagem jurídica: homicídio triplamente qualificado e estupro de vulnerável.

Foi, entretanto, uma desculpa intelectualmente desonesta. Por mais de um motivo.

A rede afirmou que "Apenas depois da exibição do quadro, o Fantástico tomou conhecimento da gravidade do crime". Sinto muito, mas eu não consigo acreditar. Até acredito que a direção realmente não sabia, mas os jornalistas e produtores envolvidos diretamente na matéria? Bastante improvável. Aliás, um jornalista experiente (estamos falando de um dos principais programas da rede) não se perguntaria como uma pessoa está presa há pelo menos 8 anos em regime fechado? Ora, a pena para roubo é de quatro a dez anos, e um crime cometido sem violência à pessoa ou grave ameaça, a progressão exige apenas o cumprimento de 1/6 da pena, que raramente é a máxima possível. Em cerca de um ano ou menos, o criminoso estaria no semiaberto ou no aberto. É pra acreditar que ninguém da reportagem, edição ou produção sabia disto?  E que ninguém teve a curiosidade de perguntar para o entrevistado ou para a administração penitenciária o crime cometido? 

Como comentou brilhantemente o jornalista Silvio Navarro, analisando o caso no programa Pânico de 09/03/2020: pra acreditar que nenhum jornalistas sabia disso, tem que ser devoto de Nossa Senhora da Ingenuidade Jornalística!

Parece-me que o repórter amador Drauzio Varella (chamo-o de repórter por estar desempenhando este papel, e não o de médico) é o menos culpado de todos. Ele não é um profissional da imprensa e pode eventualmente (e equivocadamente) se deixar levar pela emoção. Ok, somos todos humanos e podemos cometer erros de julgamento no calor do momento. O grande culpado foi o departamento de jornalismo, que construiu uma tese, determinou o enfoque, editou, selecionou o abraço, o dramatizou e, como se viu, mentiu por omissão. Isto não deve ter passado pela direção, mas com certeza passou por uma supervisão.

Nas desculpas, a Globo reconhece dois erros: ter induzido o espectador a crer que o crime cometido teria sido roubo e ter envolvido a família do menino. Pedir desculpas por envolver a família do menino estrangulado e violentado é devido e necessário, mas não suficiente. A emissora teria que reconhecer que a matéria é, em si, um péssimo trabalho jornalístico. Uma mentira minuciosamente construída com verdades. Era toda voltada a provar uma tese: por preconceito, por "transfobia" (sic), os presidiários "trans" são abandonados até pelas famílias, e alguns ficam até oito anos sem receber uma visita! E qual é a realidade? As pessoas não gostam de criminosos violentos, e quando o crime é hediondo demais, até a família os abandona. Isso não é preconceito, é algo humano e compreensível. 

Caberia reconhecer que a tese desenvolvida era equivocada ou, na mais benevolente das hipóteses, sem amparo nos fatos exibidos. E que houve indevida manipulação emocional dos espectadores - com longas pausas, músicas, seleção de imagens, construção do personagem. Não foi mera omissão de dados: o objetivo da reportagem era levar o espectador a sentir o máximo de empatia e carinho por alguém que supostamente seria uma vítima de um abandono cruel, e assim confirmar a tese de abandono por preconceito.

O mais irônico: os presos "trans" que erraram mas são pessoas dignas, como aparentemente acontece com "Lola" (condenado por roubo), recebem visitas e são acolhidos pela família (11:24 do vídeo). O que contraria a tese apresentada.

A omissão de um dado relevante em uma matéria é um erro escusável, mas a construção de narrativa falsa desmentida pelos fatos ("o presidiário abraçado foi abandonado até pela família em razão de sua sexualidade") é uma desonestidade intelectual - e em relação a ela, a Globo não se desculpou. 

P.S. 

1) Uma excelente análise jornalística sobre o caso foi dada pelo jornalista Sílvio Navarro, no programa "Pingo nos Is" de 09/03/2020. Também a análise de Augusto Nunes no mesmo programa é interessante.

2) Sem se desculpar, a Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo (SAP SP) apagou o tweet que incentivava o envio de cartas ao preso. Será que também não sabia qual era o crime cometido? Gostaria muito de saber quem elaborou esta arte utilizada no tweet apagado e se foi paga com dinheiro público.





Tweet originalmente em https://twitter.com/sapsp/status/1234603130068852737, mas apagado


domingo, 8 de março de 2020

Solidão e infanticídio

No dia 1º de março de 2020, o programa Fantástico (Rede Globo) exibiu uma "reportagem" sobre presidiários "trans" que, segundo a emissora, seriam "mulheres trans, ou seja, presas que nasceram num corpo de homem, mas são mulheres" (sic). São "mulheres com pênis" (e "homens que menstruam"). Mera crença travestida de verdade científica absoluta.

Em determinado momento, o programa seleciona trecho de um depoimento (para passar a linha editorial): "o cárcere, ele é um é lugar de detenção de pobreza, onde ficam os indesejáveis, né, da sociedade" (6:57). Coisa abjeta seria prender alguém por ser pobre ou indesejável, não?

Em outro ponto (10:21), o repórter (Dráuzio Varella) pergunta para um detento ("trans") há quanto tempo ele está sem receber nenhuma visita na cadeia:
- Oito anos, sete anos, bastante tempo... é isso.
- Solidão, não é, minha filha?
- Bastante... bastante.

Após uma longa pausa dramática, o repórter dá um emocionado abraço. Tudo muito inocente, delicado. Tão emocionante que, no Twitter, o Governo de São Paulo divulgou o endereço para o envio de cartas. Com direito até a arte gráfica com a imagem do entrevistado.

Nos dias seguintes, várias matérias relataram que centenas de cartas foram enviada para o detento. Sempre em um tom de comoção e aprovação.

- Correio Braziliense: 
- Gaucha ZH: 
- BHAZ:
- Revista Fórum: 
- Extra (Globo): 

Mas a "reportagem" da Rede Globo deixou de mencionar um pequeno, porém relevante, detalhe sobre a solitária criatura: a razão pela qual ela estava ali. E não era por ser pobre ou indesejável.

Em excelente cobertura, o site O Antagonista expôs o caso:


O repórter e a emissora alegaram  que não se indagou sobre os crimes cometidos. Pode ser, mas por que? Não acharam a história um pouco estranha? Por que alguém ficaria tanto tempo sem receber visitas nem de parentes? E por que fazer uma matéria sentimentalóide em um presídio, ignorando -propositalmente, por decisão editorial - os crimes que levaram os entrevistados à prisão?

"Ah, foi um momento de humanidade e compaixão, natural naquelas circunstâncias!", diria alguém. Pode ser. Mas isso é irrelevante. O repórter poderia ser uma pessoa muito emotiva e ter abraçado a todos os presidiários. Poderia ser a pessoa mais crédula e ingênua do mundo. Pouco importa: relevante é a decisão editorial, pensada, dirigida, de selecionar aquelas imagens do abraço e dar um enorme destaque, dando um tratamento emocionado e emocionante ao gesto sem interesse jornalístico.

E se o caso não tivesse sido exposto? O público ficaria com impressão de que se prendeu alguém somente por ser pobre ou indesejável. Ou por homofobia! Isto faz com que a visão de mundo do expectador fique distorcida, acreditando que vivemos em um país no qual há perseguição aos desfavorecidos, e que os presos são vítimas. Vítimas da sociedade.

Com estas informações, entende-se que é bastante natural que a pessoa não receba visitas. Este tipo de crime não é aceito nem na penitenciária, e os criminosos que o comentem costumam ficar em isolamento para não serem mortos pelos companheiros de cela.

Para quem tiver interesse, a matéria da Gospel Prime é bem melhor do que toda a reportagem da Globo:


[A pessoa], que está presa desde 2010, “praticou atos libidinosos consistentes em sexo oral e sexo anal com o menor [...], que à época contava com apenas 09 anos de idade”, segundo processos 2014.00000636471 e 2017.0000531529, ambos julgados pela justiça paulista.

[Ele] "matou o ofendido mediante meio cruel, consistente em asfixia, e se valendo de recurso que impossibilitou a defesa da vítima, haja vista tratar-se de criança, com mínima capacidade de resistência”, segundo a sentença.

Mas isso a Globo não mostra!

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Atualização (09/03/2020)

1) Não é a primeira vez. Como já reportado pelo site Senso Incomum, "G1 e Quebrando o Tabu comemoram pedófilo que passou no vestibular".

2) Uma professora do ensino infantil - infantil! - incentivou que crianças de, talvez, sete anos escrevessem cartas para o detento. É o que relata, com grande alegria, o site "Psicologia para Educadores" ("Em atividade escolar, crianças fazem mensagens para mulher trans encarcerada que não recebe visitas há 8 anos"). 

3) Continuação aqui.